“Hoje há um exagero no uso de remédios”, diz pediatra

Jayme Murahovschi falou sobre temas variados, que interessam muito aos pais, como alimentação adequada e doenças comuns


Especialista tem mais de 60 anos de carreira e é autor
de vários estudos (Foto: Alberto Marques/A Tribuna)

Ele é um dos mais respeitados pediatras do Brasil. Tem especialização em gastroenterologia, mas orgulho de ser chamado de “pediatra geral”: analisa os pacientes dos pés à cabeça, passando pela parte psicológica. Uma consulta com Jayme Murahovschi, em São Paulo, pode durar até duas horas.

Com quase 60 anos de carreira, já cuidou de milhares de crianças e adolescentes, que mais tarde também levaram seus filhos para atendimento com o simpático pediatra, de 84 anos. Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Murahovschi é autor de estudos, pesquisas e livros, muitos deles premiados. Uma das publicações mais importantes, Pediatria Diagnóstico + Tratamento, está na 7ª edição e há 35 anos é a mais lida pelos pediatras brasileiros.

O médico também deixou sua marca em Santos, onde trabalhou por mais de três décadas, atuando no Hospital Estadual Guilherme Álvaro (HGA) e na vida acadêmica. O pediatra, que tem quatro filhos e 10 netos, retornou à Cidade na semana passada para participar de um evento na sede santista da Associação Paulista de Medicina (APM), na Avenida Ana Costa. No local, conversou com A Tribuna sobre temas variados, que interessam muito aos pais. Alimentação adequada, doenças comuns, mitos e exageros que devem ser evitados. O excesso de diagnósticos equivocados e indicação de remédios desnecessários também foram bordados por Murahovschi.

O aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida é o mais indicado. Por que não pode oferecido outro alimento?

Porque não precisa. Até demorou para descobrirmos isso, mas as pesquisas demonstram. Existe uma coisa que se chama dieta normal – que vale para todos nós – é aquela que nos mantém em boas condições físicas e mentais. Então, a dieta normal no primeiro semestre de vida é constituída de um único alimento: o leite da própria mãe, em regime de livre demanda, sem horário fixo. A criança faz o horário. Não precisa água, suco, vitamina, nada. Se introduzir alimento antes, vai fazer mal. Não vai morrer por causa disso, mas não é bom para a saúde da criança, atrapalha. Hoje se dá grande importância à flora intestinal, e a flora perfeita é só com leite materno. A partir do segundo semestre de vida, quando a criança faz 181 dias, a dieta normal dela não é mais só o leite materno, porque ele não tem todos os nutrientes que ela precisa para essa fase do crescimento.

Por que os bebês têm cólicas?

A cólica segue a regra dos três, estabelecida há 60 anos. Começa com três semanas de vida. E tem um horário clássico, entre 19 e 23 horas. Vai se agravando até a sexta semana, depois decresce e desaparece aos três meses, milagrosamente. E não tem nada a ver com o que a mãe come. O bebê chora em média três horas por dia, mas tem o bebê chorão, aquele que chora até durante a mamada.

A partir dos seis meses, que tipo de alimento deve ser dado para o bebê. Há cada vez mais adeptos da chamada técnica BLW, ou seja, oferecer comidas em pedaços grandes e deixar o bebê se virar sozinho. As papinhas ficaram no passado?

A partir dos seis meses a dieta complementar é a papa. Começa tirando uma mamada do horário do almoço e dando. Essa papa deve ter carne, legumes, verduras, leguminosas, cereais e azeite. Veja como a alimentação para substituir a mamada é complexa. Além das frutas de sobremesa. Então é isso que precisar dar, agora como apresentar? Fazer um suco, como se fazia antigamente, é errado. No liquidificador, de jeito nenhum. Nem a peneira é mais usada, basta amassar com o garfo, deixando em pedacinhos cada vez maiores. Faz parte do desenvolvimento a criança ter cores, consistências e tamanhos diferentes. Mas essa técnica que você falou é modismo, porque quando se faz a comida para a criança, se coloca tudo o que é necessário para ter todos os nutrientes. Quando a criança escolhe, ela vai comer um pedaço de batata, depois um pouco de feijão. Então não fica adequado como fazer tudo junto. A quantidade fica a critério da criança. Eu digo que é de 150 a 200 gramas, algumas chegam a 250. Isso dá uma ideia do que é habitual. Mas ela precisa ter uma rotina, a cada quatro horas. Se ela tem uma mamada às 7 horas, vai ter o almoço às 11 horas, estará com fome e seguimos a fome dela.

E com relação a líquidos? Muitos bebês rejeitam água, oferecer sucos em grande quantidade pode trazer problemas?

Não é correto, hoje o suco está em baixa. O mais importante é a fruta, porque em pedaços a absorção (do açúcar) não é tão rápida. Existe um suco que a gente dá: de laranja. É o único, porque laranja é difícil a criança comer e tem vitamina C. De 100 a 120 ml por dia é suficiente, não precisa mais. Natural, porque suco industrializado é péssimo. O ideal é oferecer água. Todo mundo pode fazer onda com comida, com sede ninguém faz isso. Quem tem sede toma água.

Existe uma idade para parar de amamentar que não seja prejudicial para a criança?

A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que a criança deve mamar no peito da mãe até os dois anos ou mais. Então pode ser mais do que dois anos, desde que de maneira adequada. Tem mães que ficam viciadas no peito, não o bebê, a mãe mesmo. É um jeito de se livrar, a criança choraminga ela já bota o peito. Isso é horrível. Quer dar de mamar, dá direito – manhã, tarde e noite. De preferência depois tira a da tarde também e dá outro alimento. Não pode dar a todo o momento. Feito dessa maneira, pode ser até dois anos ou um pouco mais. Na prática, até um ano e três meses eu acho uma boa.

Por que tantas crianças hoje são alérgicas a tantos alimentos? Realmente houve aumento das alergias alimentares ou não passa de um mito de pais muito preocupados?

É um mito e está trazendo problemas muito sérios. Quando a criança chora mais do que a média, os pais, e até os médicos, falam que é alergia ao leite de vaca que a mãe toma. É uma mentira que traz o inferno para a vida da mãe, ela não pode tomar nada que tenha um pouquinho de leite. Existe alergia ao leite de vaca, mas 90% é exagero. É uma besteira que piora tremendamente a vida da família inteira.

Como se faz um diagnóstico de alergia à proteína do leite?

Infelizmente, não existem dados laboratoriais muito satisfatórios, então precisa fazer um teste. Primeiro, é necessário ter uma lógica, quando aparece sangue nas fezes, coisas mais evidentes. Não sair achando que tudo é alergia. O teste é de duas semanas sem tomar, se melhorar, dá de novo e observa. Mas até um ano de idade, 95% dos casos curam.

Quando o assunto é vacinação, existem diferenças relevantes entre a rede pública e as clínicas particulares?

O sistema público de vacinação do Brasil é o melhor do mundo. Se tudo fosse assim, o Brasil seria um país maravilhoso. Tem algumas pequenas falhas, tem. Por exemplo, a vacina tríplice, que é muito boa na rede pública, dá mais reação. Mais febre, dor no local. A vacina contra pneumonia é contra 10 cepas, na rede particular é contra 13. Mas pode seguir tranquilamente pela rede pública, é uma maravilha.

Antes dos dois anos de idade é ruim colocar a criança em escolas ou creches?

A mãe que volta ao trabalho, às vezes coloca na creche com seis meses. Muitas vezes eu mesmo mando colocar na escola, é bom vai sociabilizar. Agora, já aviso, vai ter mais resfriado, infecções nas vias aéreas. Mas tudo na vida tem sua vantagem, depois cria imunidade.

Outra questão é o refluxo gastroesofágico, por que acomete tantos bebês?

Isso se transformou numa paranoia impressionante. Tanto o público quanto os médicos parecem atuar em conluio. Regurgitar sempre foi normal, todos nós regurgitamos quando éramos crianças. É o chamado refluxo fisiológico, não é doença. Hoje existe um exagero muito grande no diagnóstico de refluxo, qualquer coisa é refluxo. Se a criança está irritada e regurgita, já dizem que é refluxo. Existe essa doença? Lógico que existe. Nesses casos há um prejuízo à saúde da criança, o crescimento não é ideal. Isso pode ocorrer. Mas na maioria das vezes o diagnóstico de refluxo não é real, se exagera no uso de remédio.

E o intestino preso, como tratar? Há casos de crianças que ficam muitos dias sem evacuar.

Eu comecei minha carreira com muitas pesquisas sobre diarreia, que na época matava muito as crianças no Brasil pela desidratação e desnutrição. Hoje, curiosamente, atendo muito mais o contrário, a constipação intestinal, o intestino preso. O bebê, no primeiro mês de vida, evacua fezes mole em todas as mamadas no peito. No segundo mês pode ficar dias sem evacuar, é normal. Mas temos o outro lado da questão, se a criança está tomando mamadeira, pode ter constipação porque alguns leites prendem o intestino. Nessas crianças com tendência, usamos leites com prebióticos, fibras vegetais. Mas eu recebo casos de constipação funcional, não tem doença associada. Curiosamente começa em torno de dois anos e meio. A criança fica vários dias sem evacuar, começa a ter dor de barriga forte e não quer ir no banheiro evacuar, porque sabe que vai sofrer. Ela as vezes fica andando pela casa, ela está segurando, não quer evacuar porque sabe que vai doer. Eu recebo muito desses casos, gente que está sofrendo há meses. Primeiro, é preciso acertar a alimentação, muitas crianças tomam leite várias vezes por dia e quase não comem. Esse excesso de leite prende o intestino, então a primeira coisa é reduzir ou trocar por leite de soja. Depois oferecer alimentos que estimulam o intestino, como cereais integrais. Arroz, macarrão, pão, bolacha, todos integrais. Tem um alimento que é ótimo para isso: ameixa preta. Além disso, a gente precisa usar laxantes à base de fibras vegetais, as vezes um pouco mais forte no começo. Temos que estimular que a criança vá no banheiro evacuar, estipular prêmios. Então tem o fator psicológico que é devido ao sofrimento, por isso é necessário amolecer as vezes, não adianta ela fazer aquele cocô duro.

As hérnias são muito comuns em bebês, por que isso acontece? Há motivo para preocupação?

Hérnia de umbigo não tem perigo. Mas inguinal, tem que operar, é perigosa, porque pode estrangular. A umbilical tem grande chance de desaparecer sozinha, então esperamos pelos menos até o aniversário (de um ano). Isso é de nascença, a parede do abdômen, a musculatura é fraca. É a natureza.

As manchas na pele do bebê, chamados hemangiomas, são comuns também. Devem ser tratados?

Geralmente desaparecem sozinhos, tem que ter paciência porque é lento. Agora, tem lugares perigosos ou desagradáveis. Existem medicamentos que fazem reduzir, relativamente simples. As vezes pelo lugar é perigoso, perto do olho, pode sangrar numa batida.

Qual a importância do sono para a criança?

Quando eu comecei na profissão o problema mais comum era: doutor meu filho não come. Hoje o grande problema é: doutor meu filho não dorme. É reflexo da vida tensa que a gente leva hoje. Isso tona um inferno a vida da criança e da família. Estou falando de criança em torno de um ano, que é mais comum. Tem que ser firme para que as crianças façam as coisas direito.

Até que idade as crianças devem só brincar e quando devem começar as cobranças por resultados, na escola, no esporte?

Primeiro é brincadeira, mas que gaste energia. Depois começam esportes mais programados, mas não especializados. Natação é muito bom. O ideal é uma escola que faça várias coisas. Exigir resultados, competição, só na adolescência.

O que é importante na educação dos filhos?

Os pais precisam dar limites para os seus filhos e isso vale para tudo, inclusive celular e videogame. Impor horário para dormir. Depende da fase de desenvolvimento da criança e o pediatra tem que orientar. Dar muito presente é ruim. Às vezes a criança faz aniversário e o irmão tem que ganhar presente também para não ficar chateado. Como isso? Ele tem que saber que terá o dia dele, que hoje é o dia do irmão. Ah, e não basta dar brinquedo, tem que brincar com a criança. Hoje recomendamos muito leitura de livros. Livro significa uma folha que tem uma bola e está escrito bola.

Existem crianças que durante o choro ficam nervosas e prendem a respiração, chegam até a desmaiar. Por que isso ocorre?

Isso se chama dispneia suspirosa. A criança começa a chorar, enche o peito, segura e não consegue soltar. Pode chegar a perder os sentidos. Mas desmaiar são casos mais graves, é sinal de que alguma coisa errada está acontecendo na família. É preciso fazer uma revisão porque tem algo de errado, não é só ir no pronto-socorro.

O que podemos fazer para dar mais segurança para as crianças em relação à dengue, zika e chikungunya? Repelentes funcionam?

É uma pegunta de difícil resposta. Se for em lugares com mais mosquitos precisa passar repelente. Não ir na praia nos horários piores, geralmente ao amanhecer e ao anoitecer. E rezar toda a noite.

Há comprovação científica de dores nos ossos em decorrência do crescimento?

Acontece no meio da madrugada, a criança acorda com dor, faz uma fricção e melhora. Dor do crescimento dá em torno dos 3, 4 anos de idade, de noite, de madrugada, nas pernas. Mas se uma criança maior estiver com muitas dores e durante o dia, isso não é dor do crescimento. Precisa ver o que é.

Por que tanta criança hoje toma remédio para tensão, ansiedade, depressão. Há uma mudança no comportamento ou são os pais que não sabem lidar com elas?

Na vida atual a tensão é maior, então existem mais problemas desse tipo. Mas há um exagero da medicalização atual, é mais fácil dar remédio do que tentar mudar o ambiente, o trato com a criança. Deve ser evitado o exagero do uso de remédios e tentar mudar o comportamento, o relacionamento com a criança. Quando a gente vê que é só fator psicológico, a situação não é boa em casa, a criança não recebe atenção, tem que mudar isso. Quando o caso é mais sério, procurar uma psicóloga. Hoje existe um excesso de remédios.